Quando eu penso que nada há mais para
me indignar com relação ao que é noticiado na grande imprensa, eis que surge o grande noticiário acerca do cardeal
dom Eugênio Sales em que é apresentado como um grande protetor dos perseguidos
pela ditadura implantada em março/abril de 1964. Apresentaram, como exemplo,
sua intervenção no caso de um estudante preso pelos militares, (e parece que
somente intercedeu porque o jovem era de uma família de conhecidos seus – ou quem
sabe até mais que conhecidos. O que somente vem confirmar seu prestígio junto
aos milicos).
Olha, este senhor foi um fervoroso
defensor, esta é que é a verdade, do golpe militar, foi declaradamente
anti-comunista e, talvez, o maior perseguidor da Teoria da Libertação, que teve
seus principais idealizadores expulsos da igreja católica, por pressões daquele
que hoje querem pintá-lo de bom moço.
Fico com o autor do texto abaixo
transcrito, extraído do Blog de Luís Nassif, que o denomina o “cardeal da
ditadura” e aproveito para dar título a esta minha postagem.
Enviado por luisnassif, dom,
15/07/2012 - 14:27
Por Maurício Gil - Floripa (SC)Dom Eugênio Sales era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE, No Blog Bob Fernandes
O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugenio Sales, ocorrida na última segunda-feira, com direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão "Uma cidade sem passado", de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção.
Comecemos pelo filme, que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é "Minha cidade natal na época do III Reich". Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing – como é denominada no filme – considerada até então baluarte da resistência antinazista.
Mas
a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória – o arquivo
municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen –
fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém quer que
uma "judia e comunista" futuque o passado. Sônia, porém, não desiste.
Corre atrás. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas próximas,
familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são
fragmentadas, descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.
A
jovem pesquisadora procura, então, as autoridades locais, que se recusam a
falar e ainda consideram sua insistência como uma ameaça à manutenção da
memória oficial, que é a garantia da ordem vigente. Por não ter acesso aos
documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, porém, de que
debaixo daquele angu tinha caroço – perdão, de que sob aquele chucrute havia
salsicha – resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de
formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.
Hostilizada
pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação
na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente,
consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela
descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, longe de
ter sido um bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de
concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com
a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa
mancha vergonhosa da memória, forjando um passado que nunca existiu.
Os
documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por
dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos,
tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso,
era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão,
posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio!
Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.
Deus
tá vendo
E
é aqui que entra a forma como a mídia cobriu a morte do cardeal dom Eugênio
Sales, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos
(1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu
nesse período? O Brasil já elegeu três presidentes que foram reprimidos pela
ditadura, mas até hoje, não temos acesso aos principais documentos da
repressão.
Se
a Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio último pela presidente Dilma
Rousseff, pudesse criar, no campo da memória, algo similar à operação
"Deus tá vendo", organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul,
talvez encontrássemos a resposta. Na tal operação, a Polícia prendeu na última
quinta-feira quatro pastores evangélicos envolvidos em golpes na venda de
automóveis. Seria o caso de perguntar: o que foi que Deus viu na época da
ditadura militar?
Tem
coisas que até Ele duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do
cardeal Eugênio Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, uma agência
nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Também, cobri reuniões e
assembleias da Conferência dos Bispos para os jornais do Rio – O Sol, O Paiz e
Correio da Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a
partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho. Os bispos que lutavam
contra as arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin,
Paulo Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas
não dom Eugênio, que jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder,
o padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969, num crime que continua
atravessado na garganta de todos nós e que esperamos seja esclarecido pela
Comissão da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que
escutássemos um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da
libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.
O
cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapé,
muito atuante no campo político. Foi ele um dos inspiradores das
"candocas" – como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE,
a Campanha da Mulher pela Democracia. As "candocas" desenvolveram trabalhos
sociais nas favelas exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres
para seus objetivos golpistas. Foram elas, as "candocas", que
organizaram manifestações de rua contra o governo democraticamente eleito de
João Goulart, incluindo a famigerada "Marcha da família com Deus pela
liberdade", que apoiou o golpe militar, com financiamento de
multinacionais, o que foi muito bem documentado pelo cientista político René
Dreifuss, em seu livro "1964: A Conquista do Estado" (Vozes, 1981).
Ele teve acesso ao Caixa 2 do IPES/IBAD.
Nós,
toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom
Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de
amnésia – e não sofro de amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa –
posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário manifestava
publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os
poderosos.
"Quem
tem dúvidas…basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n'O Globo"
– escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e
avaliou assim a opção preferencial do cardeal:
"A
Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais
se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as
estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de
católicos no país: 45,8%…"
Portões
do Sumaré
Por
isso, a jornalista estranhou – e nós também – a forma como o cardeal Eugenio
Sales foi retratado no velório pelas autoridades. Ele foi apresentado como um
combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para
abrigar os perseguidos políticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha
eleitoral, declarou que o cardeal "defendeu a liberdade e os direitos
individuais". O governador Sérgio Cabral e até o presidente do Senado,
José Sarney, insistiram no mesmo tema, apresentando dom Eugênio como o campeão
"do respeito às pessoas e aos direitos humanos".
Não
foram só os políticos. O jornalista e acadêmico Luiz Paulo Horta escreveu que
dom Eugênio chegou a abrigar no Rio "uma quantidade enorme de asilados
políticos", calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em "mais
de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do
Sul". Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil. Ou
seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por
baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. Só faltou
arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como "o intrépido
pastor".
Seria
possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das
vítimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se
solidarizou. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só – umazinha – dessas
cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso
depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo
Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel,
procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.
Segundo
Hilde, dom Eugênio "fechou os olhos às maldades cometidas durante a
ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos
jovens ditos "subversivos" que lá iam levar suas súplicas, como fez
com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)". Ela acha
surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar "que ocorreu
justo o contrário!", como no filme "Uma cidade sem passado".
Mas
não é tão surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande
habilidade, em vida, de dom Eugenio, em "manter ótimas relações com os
grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos". As
azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em
postos-chave continuaram depois da morte, como é possível constatar com a
cobertura do velório. A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como
uma autodefesa da mídia e do poder.
Os
jornais elogiaram, como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal
Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João
Paulo II, com o mesmo zelo e unção com que o senador Alfredo Nascimento levava
tucumã já descascado para o café da manhã do então governador Amazonino Mendes.
São os rituais do poder com seus rapapés.
"Dentro
de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e
negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que
não possam ser confundidas com a "verdade", as memórias têm valor
social de "verdade" e podem ser difundidas e reproduzidas como se
fossem "a verdade" – escreve Teun A. van Dijk, doutor pela
Universidade de Amsterdã.
A
"verdade" construída pela mídia foi capaz de fotografar até "a
presença do Espírito Santo" no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha,
Gilberto de Almeida, 59 anos, corretor de imóveis, no caminho ao velório de dom
Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$
25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: "Foi
um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo" – berraram os jornais.
Parece que vale tudo para controlar a memória, até mesmo estabelecer preço tão
baixo para uma das pessoas da Santíssima Trindade. É muita falta de respeito
com a fé das pessoas.
"A
mídia deve ser pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um
agente produtor de imagens, representações e memória" nos diz o citado
pesquisador holandês, que estudou o tratamento racista dispensado às minorias
étnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de
produção de uma imagem social sobre o passado são usados no campo da disputa
política.
Nessa
disputa, a mídia nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que
pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor
para os amigos do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart
Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de
parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom
Eugênio tinha suas virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade
aos perseguidos políticos para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário,
permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!
P.S:
O jornalista amazonense Fábio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard
Angel, que circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro,
historiador e professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me
indicou, há anos, o filme "Uma cidade sem passado". Quem me permitiu
discutir o conceito de memória foram minhas colegas doutoras Jô Gondar e Vera
Dodebei, organizadoras do livro "O que é Memória Social" (Rio de
Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós- Graduação em Memória Social da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005). Nenhum deles tem
qualquer responsabilidade sobre os juízos por mim aqui emitidos.
José Ribamar Bessa Freire e professor, coordena o
Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de
Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO