quinta-feira, 28 de julho de 2011

O Neo-liberalista Arrependido

Leio hoje, 28/07/11, no site WWW.conversaafiada.com.br, (Blog de Paulo Henrique Amorim), a entrevista fornecida, em abril p. passado, por Luiz Carlos Bresser Pereira, ex-ministro da Fazenda no governo de FHC, ao jornal VALOR, de São Paulo.
Achei muitas coisas interessantes na entrevista, razão porque a reproduzo neste meu Blog.
Devo esclarecer, antes de tudo, que não morro de amores pelo referido Sr., sei dos males que o governo, do qual participou com muita importância, fez ao país, (e não vou aqui comentar sobre seu plano econômico), mas há coisas ditas aqui que merecem reflexão.
Esteja ele arrependido ou não, tenha ele cometido erros, com o governo, mas deixa uma coisa escancarada: neo-liberalismo x nacional-desenvolvimentismo. E que parece estar provado ser o nacional-desenvolvimentismo a melhor opção para nossa nação.
Sem querer dar aula alguma, preciso dizer que no mundo atual, país algum pode existir, viver bem, sem que faça parte do comércio internacional; das trocas de mercadorias, produtos, tão essenciais à sobrevivência; assim como, de participar da troca de informações, de conhecimentos, etc. Isto, nada mais é do que a (que termo famigerado!) globalização. E ele diz, em alguma parte de sua entrevista, que para participar da globalização é necessário “uma estratégia nacional de desenvolvimento”, que tem origem nos ideais da CEPAL (Celso Furtado) e do ISEB, ideais antagônicos aos rumos tomados pelo governo FHC, que se apoiou (o governo), ao que ele deixa entender na teoria da dependência associada,(teoria do próprio ex-presidente), ou seja crescimento do país baseado no capital externo, “....era a subordinação ao império...”. Daí as desenfreadas e (“no limite da responsabilidade”) privatizações.
Achei interessante, ainda, sua visão sobre os políticos: “Acho que uma análise mais interessante que foi feita da política nos últimos anos foi a do lulismo, do André Singer, pois ele separa o lulismo do PT. Entendo que o PT perdeu uma parte de seu apoio ideológico quando fez seus compromissos, mas é muito importante na política aceitar compromissos.” E mais uma frase profética de Franco Montoro: “Muito bem, mas e se esse bendito PT, que se diz revolucionário, que tem propostas para a economia brasileira completamente irresponsáveis, chega no poder ou perto do poder e se domestica, e se torna social-democrata, como aconteceu na Europa? Eles têm toda uma integração com os trabalhadores sindicalizados, que nós não temos, então nós vamos ser empurrados para a direita”.
Acho que vale a pena ler a entrevista, mesmo porque ajuda a compreender mais estas coisas tão intrigadas e intrigantes que são a política, a política econômica e nossa conjuntura nacional e internacional.   
Do Valor
Por uma ideia de nação
Maria Inês Nassif | De São Paulo
08/04/2011

Intelectual full-time desde que deixou o governo tucano de Fernando Henrique Cardoso, em 1999, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira, depois da conturbada campanha eleitoral do ano passado, eliminou seu último vínculo com a política institucional: declarou-se desligado do PSDB, que, segundo ele, caminhou de forma definitiva para a direita ideológica, empurrado pela acomodação do PT na posição da social-democracia, da qual, ao longo de oito anos de governo Lula, acabou por desalojar os tucanos.

O desligamento partidário é que apenas não se concretizou na burocracia do partido por questões de ordem prática: Bresser-Pereira precisa ir pessoalmente ao diretório, para oficializar seu desencanto é marca também o retorno do intelectual à sua origem desenvolvimentista. Bresser-Pereira conta com satisfação ter sido influenciado diretamente pela escola do Iseb de Hélio Jaguaribe e Inácio Rangel, nos anos 50, e pela escola estruturalista cepalina de Celso Furtado. Foi a atração pelo desenvolvimentismo que o levou a abjurar o direito e tornar-se um economista e cientista social do desenvolvimento. Não sem desvios, reconhece. Bresser-Pereira não escapou à sedução do neoliberalismo, nos anos 90, como de resto toda a social-democracia europeia. Mas define uma diferença de origem entre ele e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, como intelectuais: o nacionalismo.
Para Bresser-Pereira, a teoria da dependência associada, de Fernando Henrique, não por intenção do autor, mas por conveniência do “império”, caiu como uma luva para a esquerda americana. No governo, Fernando Henrique não se contradisse: a teoria da dependência associada pregava o crescimento do país com capital externo. O caráter não nacionalista dos governos tucanos era absolutamente compatível com a teoria da dependência associada do intelectual Fernando Henrique.
Bresser-Pereira vai lançar o último livro de uma trilogia que, no seu entender, marca não apenas seu retorno às ideias nacionalistas, mas a formulação do que ele considera uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento. “Construindo o Estado Republicano”, de 2004, é a consolidação dessas ideias no plano político; “Globalização e Competição”, na teoria econômica. O terceiro, “Capital, Organização e Crise Global: Teoria Social para o Longo Século XX: 1900-2008″, fecha o círculo do pensamento de Bresser-Pereira na teoria social.
Valor: O senhor considera que, de alguma forma, tenha antecipado o debate sobre o neoliberalismo?
Luiz Carlos Bresser-Pereira: Antecipei, mas depois afrouxei. Em 1990, dei a aula magna da Anpec [Associação Nacional dos Centros de Pós-graduação em Economia], que depois foi publicada na revista do Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], onde fiz a primeira crítica, que eu conheça, ao Consenso de Washington. A esquerda, em geral, só veio a descobrir o Consenso de Washington em 1993. A primeira reunião que deu no Consenso de Washington foi em 1989. Mas eu soube dela, e fiz a minha crítica em 1990. Daí o John Williamson fez um segundo seminário sobre o Consenso de Washington, em 1993. E não sei por que cargas d’água fui convidado, acho que por causa da minha experiência com o Plano Bresser. Estava lá também o José Luiz Fiori. A primeira crítica violenta ao neoliberalismo, pelo menos que eu tenha lido, foi do Fiori, e foi feita a partir da segunda reunião, ou seja, quatro anos depois da minha crítica. Mas foi uma crítica violenta e a minha não foi tanto, porque eu não sou tão de esquerda quanto ele, temos posições um pouco diferentes.
Valor: No momento, o senhor faz um retorno ao nacionalismo. E como foi o encontro com o desenvolvimentismo?

Bresser-Pereira: Eu tinha 20 anos, estava começando o terceiro ano da faculdade de direito, em 1955, era católico da Ação Católica e ia ser juiz de direito. Era esse o meu projeto. Daí, numa colônia de férias da Ação Católica, da JEC [Juventude Estudantil Católica], em janeiro, eu li uma edição dos “Cadernos de Nosso Tempo”, o de número quatro, do grupo que formaria naquele ano o Iseb [Instituto Superior de Estudos Brasileiros], com trabalhos do Hélio Jaguaribe, do Alberto Guerreiro Ramos, do Inácio Rangel, do Álvaro Vieira Pinto, do Roland Corbisier e do Nelson Werneck Sodré. Li e vi que lá tinha uma história do Brasil diferente: era um Brasil que tinha sido colônia, depois havia sido semicolônia, e isso era novidade para mim. E a partir de 1930 começava a revolução nacional brasileira e a revolução industrial brasileira, liderada por Getúlio Vargas, numa associação política que colocava juntos alguns setores da velha oligarquia, que Inácio Rangel chamava de substituidora de importações, com os industriais, a burocracia pública e os trabalhadores urbanos que estavam surgindo. Falavam tudo isso em função da eleição próxima do Juscelino Kubitschek, que eles apoiavam. Aquilo fez todo sentido para mim, entendi tudo que estava acontecendo em volta de mim, entendi todos os meus amigos, minha família, todo o país: ou era a UDN, liberal, associada ao império, tentando impedir a industrialização do país, porque o Brasil era essencialmente agrário — agora está ficando outra vez –, ou os que defendiam o desenvolvimento industrial brasileiro. Era o desenvolvimentismo, e o nacionalismo. Para enfrentar o império, você tem que ser uma nação, e uma nação tem que ter uma estratégia nacional de desenvolvimento. Tornei-me um nacionalista e um desenvolvimentista de esquerda – de centro-esquerda, pois nunca fui comunista. Naquele dia, em Itanhaém, na colônia de férias da JEC, depois de ler aquela revista que alguém tinha deixado em cima da mesa, tomei uma decisão: não vou ser mais juiz de direito. Vou terminar a faculdade de direito e eu já estava noivo desta senhora que é minha esposa, Vera Cecília –, mas vou ser sociólogo ou economista do desenvolvimento. E a minha vida foi isso.

Valor: Esse foi um caminho seguido sem desvios?

Bresser-Pereira: Nesse projeto, fui fazer meu mestrado nos Estados Unidos, por conta já da Fundação Getúlio Vargas. Então já fui influenciado pelas ideias americanas de modernização etc. Voltei para o Brasil e fui diretor do Pão de Açúcar — isso também faz com que você vá perdendo um pouco das suas garras, seu caráter crítico. Você começa a viver a sociedade e querer consertá-la, mas…

Valor: O senhor tinha militância partidária na época em que decidiu mudar de rumo?

Bresser-Pereira: Naquele momento, eu era do PDC, o Partido Democrata Cristão, e todos os meus amigos também – o Plínio de Arruda Sampaio, o Jorge Cunha Lima, o Chico Whitaker. Éramos do PDC de Franco Montoro e Queiroz Filho. Vieram, então, as eleições presidenciais de 1955, e o PDC aprovou a candidatura Juarez Távora. Daí eu me declarei rompido com o PDC. Resultado: quando, em 1958, o Carvalho Pinto ganhou a eleição em São Paulo, associado ao PDC, todos os meus amigos estavam no governo. Eu não, eu já estava na oposição. Como não sou político — sou capaz de fazer política, mas não é esta minha vocação –, rompi com o PDC, mas isso não significou que eu fosse bater à porta do PTB, não, deixei a coisa ficar.

Valor: Quando o senhor acha que houve uma interseção entre seu pensamento e do grupo de Fernando Henrique?

Bresser-Pereira: Nos anos 70, o marxismo estava em plena moda. Foi quando conheci e fiquei amigo do Fernando Henrique Cardoso, do Arthur Gianotti etc. [então no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – Cebrap], que eram de centro-esquerda e democráticos, como eu também me considerava. Naquele momento, eu já estava formado e tinha publicado meu primeiro livro, “Desenvolvimento e Crise no Brasil”, em 1968, que é um livro nacionalista, desenvolvimentista e de centro-esquerda. Fez um grande sucesso. E daí cheguei no Cebrap. Eu estava perfeitamente de acordo com eles [os integrantes do Cebrap] na luta pela democracia e igualmente fazia a crítica de um certo autoritarismo desenvolvimentista que tínhamos tido antes, da despreocupação com a democracia a que tendíamos antes; estava de pleno acordo com as posições de esquerda e já estava estudando antes e naquele momento, com Yoshiaki Nakano, a teoria econômica de Marx e Keynes e Kalecky. Só que não percebi que havia um conflito muito grande na parte nacionalista, que a teoria da dependência associada do Fernando Henrique era incompatível com o nacionalismo econômico. Só descobri isso depois que saí do governo de Fernando Henrique, muitos anos depois.

Valor: O senhor acha, então, que Fernando Henrique não contradisse, no governo, sua obra teórica?

Bresser-Pereira: Não contradisse do ponto de vista nacionalista.

Valor: Quando o senhor assumiu, de fato, a social-democracia?

Bresser-Pereira: No governo Montoro, eu completei 20 anos no Pão de Açúcar, já tinha resolvido a minha vida financeira não totalmente, mas razoavelmente bem, e fui para o secretariado. Depois de quatro anos no governo do Estado, fui para o Ministério da Fazenda. Eu tinha criado com Yoshiaki Nakano um departamento de economia na FGV, que era heterodoxo, nacional-desenvolvimentista e keynesiano. Nossas referências eram Marx e Keynes, e Celso Furtado e Inácio Rangel. Era assim que via o mundo e acho que foi isso que fiz no Ministério da Fazenda. No começo dos anos 80, pensei um pouco e decidi que seria um social-democrata. Naquela época, no meu grupo, no grupo do Cebrap etc., ser social-democrata era ser um traidor da revolução socialista. Eu disse: então eu sou um traidor da revolução socialista porque não sou de direita, sou de centro-esquerda, portanto sou social-democrata, a favor da reforma do Estado, do Estado de bem estar social, essas coisas.

Valor: Então, o senhor está onde sempre esteve?

Bresser-Pereira: No governo Fernando Henrique, ou nos anos 90, a hegemonia neoliberal foi muito violenta. Foi tão violenta que também atingiu a mim. Não escapei dela. Logo que saí do governo, publiquei um livro chamado “A crise do Estado”. Aí, resolvi publicá-lo em inglês e revi o livro todo, de forma que, quatro anos depois, ele foi publicado em inglês. Quando isso aconteceu, eu já estava entusiasmado com a vitória do Fernando Henrique e influenciado pelas ideias liberais. Eu não tinha me tornado um neoliberal de forma nenhuma, tenho certeza disso, mas estava mais perto do neoliberalismo do que estou hoje.

Valor: Caiu no conto da globalização?

Bresser-Pereira: Um pouco. Não totalmente, mas ninguém é de ferro. O grande problema da social-democracia é que ela se deixou influenciar, no mundo inteiro. A Terceira Via, por exemplo, hoje tão criticada, tinha um grande intelectual como Anthony Giddens por trás dela, um homem de centro-esquerda. Foi nesse estado de espírito que entrei no governo Fernando Henrique. Mas também foi lá que tomei um susto. Via um governo muito honesto, gente muito séria, via uma preocupação com a área social que era de centro-esquerda – comandada pela Ruth Cardoso e pelo Vilmar Faria, que faziam um belo trabalho, coordenando ministérios; o trabalho feito na educação e na saúde foi realmente bom. Por aí, estávamos em casa. Eu estava fazendo a reforma gerencial, que era uma reforma essencialmente para fortalecer o Estado social, pois era a reforma dos serviços sociais e científicos do Estado. Mas fiquei surpreso com duas coisas dentro do governo: uma, que não havia nenhuma perspectiva nacional, não havia nenhuma distinção entre empresa nacional e estrangeira. Muito pelo contrário: Fernando Henrique dizia forte e firmemente que não havia essa diferença, que era tudo rigorosamente igual – e isso é bobagem, é coisa que os americanos e europeus contam para nós, mas nunca praticaram. Aquilo me deixava muito incomodado. E a outra coisa que me deixou muito incomodado foi a política econômica.

Valor: Mas houve um grande êxito no combate à inflação.

Bresser-Pereira: Desde 1980, e até 1994, não fiz outra coisa na área econômica além de lidar com a alta inflação brasileira. Eu só tinha um objetivo: a alta inflação inercial que começa em 1980 e vai até 1994. O primeiro paper sobre inflação inercial no Brasil fui eu que escrevi. O primeiro paper que foi escrito no Brasil – acho que no mundo – sobre inflação inercial foi publicado por mim e pelo Nakano, em 1983. Em 1984, eu já estava publicando um livro sobre inflação inercial, chamado “Inflação e Recessão”. Nessa época, o pessoal da PUC também trabalhou em suas contribuições. Eu me associei a eles. Eu me associei a três jovens economistas, o Pérsio Arida, o André Lara Rezende e o Chico Lopes. Existiam oito economistas no Brasil que entendiam de inflação inercial: os três que eu citei, o Edmar Bacha, mais o Eduardo Modiano, no Rio, o Nakano, eu e o Mário Henrique Simonsen. Ninguém mais. E precisava que aquilo fosse entendido para neutralizar aquela inflação, que resultou finalmente no Plano Real, na URV. Tentou-se antes com as tablitas, mas não deu certo. O Plano Real foi um sucesso, construído rigorosamente sob uma política heterodoxa — não existiu nada mais heterodoxo do que a URV, nada a ver com as coisas que o FMI e o Banco Mundial nos diziam para fazer. Aí, no dia seguinte que o plano dá certo, o Brasil se entrega novamente de mãos atadas para o Banco Mundial e para o FMI. Ou seja, compõe com o Consenso de Washington, com a ortodoxia internacional. Essa é a política econômica e a política de reformas do Fernando Henrique. As privatizações, algumas que eu apoiei, e outras, como a do setor elétrico, com a qual eu não concordava, porque tem monopólio. Então, comecei a criticar essa política ao Fernando Henrique, mas internamente, nos quatro anos que estive no governo. Todo mês, pelo menos uma vez por mês.

Valor: Todo mês?

Bresser-Pereira: Eu tinha um despacho normal com o presidente uma vez por mês, pelo menos. Fiz uma carta para ele, a carta está no meu site. Naqueles quatro anos e meio em que trabalhei no governo, não escrevi nada sobre economia, a não ser um pequeno paper chamado “As três formas de desvalorizar o câmbio”. Eu sabia que o Brasil precisava dramaticamente valorizar seu câmbio, porque estávamos caminhando para uma crise financeira – e, de fato, em 1999, entramos de cabeça numa crise causada pela nossa incompetência ou pela nossa subordinação ao FMI, ao Banco Mundial, às finanças internacionais, ao neoliberalismo. Fiz o artigo e publiquei na “Revista de Economia Política”. E ninguém percebeu. Mandei para o Fernando Henrique também. Passou-se um mês ou dois e veio o Delfim, no seu artigo na “Folha”: “Olha o Bresser criticando o governo” (risos) É muito inteligente o raio do Delfim, acho que é o melhor economista que o Brasil tem.

Valor: Mas o senhor não assumiu uma posição de confronto com o governo.

Bresser-Pereira: Quando saí do governo, saí incomodado e fui para Oxford, mas eu não ia criticar o Fernando Henrique, uma pessoa de quem gosto, que respeito sob todos os pontos de vista, assim que saísse. E não falei nada, evidentemente. E quando fui fazer o primeiro paper, lá em Oxford mesmo, fiz um paper não sobre o Brasil, mas sobre a América Latina, não sobre os últimos cinco anos, mas sobre os últimos 20 anos.

Valor: Como foi o retorno, de fato, ao desenvolvimentismo?

Bresser-Pereira: Comecei em Oxford uma grande aventura intelectual, que resultou numa proposta de estratégia nacional-desenvolvimentista alternativa ao Consenso de Washington. Quando voltei, comecei a desenvolver um conjunto de ideias novas, em relação à macroeconomia do desenvolvimento, inicialmente com o Nakano, e nós fizemos dois papers, sobre a taxa de juros e a economia brasileira de um modo geral. O último artigo nasceu de um almoço meu com o José Aníbal, então presidente do PSDB. Eu estava indignado com a política econômica do Fernando Henrique e disse isso ele, que me propôs: “Por que você não escreve sobre isso?” Aí eu chamei o Nakano e fiz esse paper, que é a base do que se chama hoje de Hipótese Bresser-Nakano, que causou um grande debate no Brasil. Mas o PSDB não disse uma palavra sobre isso. Nunca me chamou para discutir o paper (risos). O paper chama-se “Uma estratégia de desenvolvimento com estabilidade”. Depois fizemos um segundo paper, este em inglês, chamado “Economics and the assault on the market”. Era o problema da taxa de câmbio.

Valor: Do ponto de vista acadêmico, portanto, o senhor não se considera da mesma escola que Fernando Henrique?

Bresser-Pereira: Fui dar uma aula em Paris, na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, e aí o Afrânio Garcia, um antropólogo que substituiu Ignacy Sachs na direção de um centro sobre o Brasil, e mais um cientista político do Rio Grande do Sul, o Hélgio Trindade, fizeram comigo uma entrevista para uma pesquisa, em outubro de 2003. Num certo momento, disse a eles: “Não sou da escola de sociologia de São Paulo, sou da escola do Iseb”. O Afrânio disse: “O quê?” Era uma surpresa para ele. Eu me formei a partir do pensamento do Celso Furtado, do Inácio Rangel — o Celso Furtado não foi do Iseb, mas era da Cepal, e a Cepal cepalina era estruturalista, como o Iseb. É claro que fiquei amigo da escola de sociologia de São Paulo, a escola do Florestan Fernandes e do Fernando Henrique, que vai dar na teoria da dependência, mas não tenho nada a ver com isso. Quando eu disse isso, o Afrânio pediu para eu fazer um seminário. Fiz dois papers. Um, que se chama “O conceito de desenvolvimento do Iseb” e outro, mais interessante, que se chama “Do Iseb e da Cepal à teoria da dependência”, em que vou fazer a crítica da dependência.

Valor: Isso foi em que ano?

Bresser-Pereira: Foi em 2004. Para fazer esse paper, fui rever as ideias do Fernando Henrique. Eu sabia que ele tinha deixado de ser esquerda, mas eu também tinha deixado um pouco de ser esquerda. Eu continuava um pouco e ele tinha deixado de ser mais do que eu. Mas o que não era claro para mim era a parte nacionalista, a parte de poupança externa, essas coisas. Aí fui ler outra vez o livro clássico dele e do Enzo Faletto (“Dependência e Desenvolvimento na América Latina). E vi que Fernando Henrique estava perfeitamente coerente. O que é a teoria da dependência? É uma teoria que vai se opor à teoria cepalina, ou isebiana, do imperialismo e do desenvolvimentismo, que defende como saída para o desenvolvimento uma revolução nacional, associando empresários, trabalhadores e governo, para fazer a revolução capitalista. O socialismo ficava para depois. A teoria da dependência foi criada pelo André Gunther Frank, um notável marxista alemão que estudou muitos e muitos anos na Bélgica e que em 1965 publicou um pequeno artigo chamado “O desenvolvimento do subdesenvolvimento”, brilhante e radical. É a crítica à teoria da revolução capitalista, à teoria da aliança da esquerda com a burguesia. É a afirmação categórica de que não existia, nunca existiu e nunca existiria burguesia nacional no Brasil ou na América Latina. No Brasil, os seguidores de Gunther Frank eram o Ruy Mauro Marini e o Teotônio dos Santos, mas no final, e curiosamente, o seguidor deles mais ilustre vai ser o Florestan Fernandes maduro. Eles concordam que não existe burguesia nacional. Quando a burguesia nacional é compradora, entreguista, associada ao imperialismo, a única solução é fazer a revolução socialista. É bem louco, mas é lógico. Aí vieram o Fernando Henrique e o Enzo Faletto e disseram que havia alternativa, a dependência associada. Ou seja, as multinacionais é que seriam a fonte do desenvolvimento brasileiro, cresceríamos com poupança externa. Era a subordinação ao império. Claro que o império ficou maravilhado. A teoria da dependência foi um grande sucesso – e tem um artigo realmente engraçado do Fernando Henrique, em que ele fala com surpresa da grande recepção que teve a teoria da dependência associada nos Estados Unidos. Ele é um homem inteligente e correto, não estava fazendo uma adesão, mas o fato concreto é que os outros liam e faziam suas interpretações. Na prática, era uma maravilha: a esquerda americana, que se reúne nas conferências da Latin America Student Association, nos Estados Unidos, encontrava um homem democrático de esquerda que via nos Estados Unidos um grande amigo na luta pela justiça social. Quando fiz essa revisão, estava começando a romper com o PSDB.

Valor: E quando o senhor chegou ao PSDB?

Bresser-Pereira: Em 1988, fui um dos fundadores do PSDB. Na época da fundação, o Montoro não queria o nome de social-democracia para o partido, porque tinha origem na democracia cristã, que a vida inteira tinha lutado contra os social-democratas na Inglaterra, na Alemanha e na Itália. Nós ganhamos, pelo fato de sermos centro-esquerda. Mas aí ele dizia: “Muito bem, mas e se esse bendito PT, que se diz revolucionário, que tem propostas para a economia brasileira completamente irresponsáveis, chega no poder ou perto do poder e se domestica, e se torna social-democrata, como aconteceu na Europa? Eles têm toda uma integração com os trabalhadores sindicalizados, que nós não temos, então nós vamos ser empurrados para a direita”. E foi isso que aconteceu.

Valor: Quando o senhor considera que o PSDB começa essa trajetória para a direita?

Bresser-Pereira: O Fernando Henrique teve dois azares: o primeiro foi que governou o país no auge absoluto do neoliberalismo, enquanto Lula governou no momento em que o neoliberalismo começa a entrar em crise; e o segundo é que seu governo não gozou do aumento dos preços das commodities de que o Lula desfrutou. Mas o fato concreto é que no governo Fernando Henrique o partido já caminhava para a direita muito claramente. Daí o PT ganhou a eleição e assumiu uma posição de centro-esquerda, tornou-se o partido social-democrata brasileiro — e o PSDB, naturalmente, continuou sua marcha acelerada para a direita. Nas últimas eleições, ele foi o partido dos ricos. Isso, desde 2006. É a primeira vez na história do Brasil que nós temos eleições em que é absolutamente nítida a distinção entre a direita e a esquerda, ou seja, entre os pobres e a classe média e os ricos. E um partido desse não me serve, seja pela minha posição social-democrata, seja pela minha posição nacionalista econômica – tenho horror profundo e absoluto do nacionalismo étnico. Acho que a globalização é uma grande competição a nível mundial, quando todos os mercados se abriram, e passou a haver uma competição global não apenas das empresas, mas dos países. E você precisa, mais do que nunca, uma estratégia nacional de desenvolvimento.

Valor: Retomar a ideia de nação, que ficou meio apagada nos anos 90?

Bresser-Pereira: Isso, retomar a ideia de nação. E a própria ideia de centro-esquerda, que ficou um pouco apagada nesse período. Às vezes me perguntam: “Se você não é mais um membro do PSDB, foram eles que mudaram ou você?” Fomos os dois. Eles mudaram mais para a direita e eu mudei um pouco mais para a esquerda. Recuperei algumas ideias nacionalistas que achava muito importantes. E consegui desenvolver – e isso é rigorosamente novo – uma macroeconomia estruturalista do desenvolvimento. São três livros: o que tem a teoria política (“Construindo o Estado Republicano”), que saiu em 2004 pela Oxford University Press, e no Brasil em 2009; um livro econômico, “Globalização e Competição”; e um de teoria social, que estou terminando e vou enviar para uma editora agora (“Capital, Organização e Crise Global: Teoria Social para o Longo Século XX: 1900-2008″). Uma coisa importante também é que, nesses 11 anos, pela primeira vez na minha vida, desde 1959/61, sou intelectual em tempo integral. Como não faço outra coisa a não ser isso, as ideias se organizaram, se estruturaram. Estou muito ativo.

Valor: Houve uma grande ofensiva contra os gastos sociais no governo Fernando Henrique. O que o senhor acha disso?

Bresser-Pereira: Foi feito um grande contrato no final da ditadura, que se consolidou na Constituinte. A grande coalizão política das diretas-já, da transição democrática, foi dizendo o seguinte: o Brasil é muito desigual, muito injusto, nosso objetivo é diminuir a desigualdade. Como? Através de expropriação? Não, isso nem se discutia. Através de impostos progressivos ou coisa que o valha? Não, nem pensar. Não se discuta isso. Como então? Aumentando o gasto social. E foi o que se fez. A Constituição de 1988 é isso, reflete essa visão.

Valor: A Constituição de 1988 é populista?

Bresser-Pereira: É um pouco populista também. Mas a coisa para mim mais importante é que naquela Constituição se definiram os direitos sociais, entre eles se estabeleceu o direito universal à saúde. Eu me lembro muito bem quando o meu amigo Fernão Bracher falava — e não apenas ele: “Essa Constituição estabelece princípios que não podem jamais ser cumpridos”. Não é verdade. No meio desses direitos que foram estabelecidos tinha o direito universal à saúde. E o que aconteceu? Foi para a Constituição e foi cumprido. Eu duvido que você encontre qualquer outro país com uma renda per capita como a nossa que tenha um sistema universal de saúde. Os Estados Unidos não têm. E mesmo esses países europeus não têm muito isso.

Valor: Nesse período pós-redemocratização, havia populismo ou acirram-se as disputas ideológicas no parlamento?

Bresser-Pereira: Havia populismo, sim. Para se ter uma ideia, quando assumi o Ministério da Fazenda, o Celso Furtado e o Olavo Setúbal chegaram a me dizer, quase com as mesmas palavras: “Bresser, você é um louco, você está assumindo o Ministério da Fazenda na pior crise desde 1930″. Eu estava sabendo. Alguém tinha que assumir. Por que não eu? A primeira coisa que vi foi o país quebrado em nível internacional. Tinha moratória e as reservas estavam zerando, zeravam em três meses. Aliás, quem me informou isso foi o [José] Sarney (presidente da República de 1985 a 1990), porque eu nem sabia quando fui conversar com ele. E depois fui conferir com o Banco Central se era verdade. Era. A parte fiscal também estava um caos total, tudo quebrado, governo federal quebrado, governos estaduais quebrados. Então, eu disse que ia fazer ajuste fiscal. Aí veio a bancada do PMDB, que era o meu partido, me visitar, a chamada “bancada econômica do PMDB”. Eu disse para eles que a situação era muito grave. Não contei que estava fazendo o Plano Bresser, pois não podia contar, mas contei que ia fazer o ajuste. Eles ficaram indignados e montaram uma campanha para me expulsar do partido. A convenção do PMDB estava programada para 30 de junho. Sabendo daquilo, fui falar com o doutor Ulysses e disse: “Estão querendo me expulsar do partido porque defendi o ajuste fiscal”. O doutor Ulysses falou com a Conceição [Maria da Conceição Tavares] e com o Luciano Coutinho, e foram os dois que seguraram um pouco. O populismo era total. Foi aí que resolvi também que ia conversar com o FMI. Mas o FMI estava apavorado, porque era proibido para um ministro conversar com o FMI. Aí eu disse: “Vou conversar, não vou esconder nada”.

Valor: Qual a sua visão da política econômica do início da Nova República?

Bresser-Pereira: A democracia tinha levado a uma visão da economia liderada por João Manuel Cardoso de Mello, que era um desastre absoluto. E o Luiz Gonzaga Belluzzo, que é um excelente economista, estava quieto. João Manuel é que entrava em cena quando se tratava de decisões políticas. O Dilson Funaro (ministro da Fazenda) não entendia nada.

Valor: Mas era a grande estrela do Plano Cruzado, não era?

Bresser-Pereira: De fato. O Dilson era ministro, isso era em agosto de 1986, e nós fomos jantar com ele. Ele chegou um pouco atrasado e as pessoas praticamente levantaram quando ele chegou. Ele tinha virado um deus. Daí, conversando com ele, eu disse: “A situação é muito grave, esse plano vai estourar, é insustentável, é preciso fazer um ajuste fiscal grande”. Ele virou-se para mim e disse: “Pode deixar, eu vou para a televisão, faço um apelo e o povo baixa o consumo”. Ele me disse isso tranquilamente. Aí, em janeiro, a coisa já tinha explodido, eu encontro com o João Manuel no Palácio dos Bandeirantes e disse a ele: “É preciso fazer um ajuste fiscal imediato”. E ele respondeu: “Não, pode deixar, está tudo sob controle”. E aquilo explodindo… E explodiu de vez, foi uma coisa terrível, foi a explosão mais violenta que ocorreu no país. Havia tido uma expansão enorme da renda, dos salários e dos impostos e depois caiu tudo.

Valor: E o senhor assumiu o Ministério da Fazenda.

Bresser-Pereira: Pois é. E daí veio o Walter Barelli, que era presidente do Dieese [Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos], e disse que o Plano Bresser implicou numa redução de 30% dos salários. De fato, estava havendo uma redução de 30% dos salários. Mas eu disse: “Barelli, não é o Plano Bresser, houve um aumento de 30% dos salários no Plano Cruzado e, com a explosão da inflação, houve uma queda dos salários do mesmo valor. E com o meu plano eu estou aumentando em 7% o salário real, estou recuperando o salário real”. Não havia santo que fizesse o Barelli entender. Falei, então: “Espere as estatísticas”. Só que elas demoravam três meses. Três meses depois, deu exatamente o que eu tinha falado.

Valor: O que o senhor acha que está acontecendo com o quadro partidário?

Bresser-Pereira: O PSDB, paradoxalmente, e apesar da história de seus líderes, tornou-se um partido de centro-direita. O PT se tornou um partido de centro-esquerda, o que também era previsível. Falam muito mal do PMDB, e é razoável que se fale, mas é o partido do poder, que está sempre no poder porque está no centro. Isso faz parte. É preciso separar bem: existem os partidos que são meramente de negócios. Não é que todos são. O PSDB não é um partido de negócios, o PT certamente não é, parecia que o PSB não era, mas está virando a curto prazo, o PTB sempre foi um partido de negócios, e vários outros. O que chamo de partido de negócios é o partido em que os deputados estão lá, os políticos estão no partido exclusivamente com o objetivo de defender os seus interesses, e mais nada. Tenho uma briga muito grande com os cientistas políticos neoliberais, da escolha racional, para quem os políticos são homens que meramente se preocupam com seus interesses, ou fazem escolhas exclusivamente entre a vontade de ser reeleitos, que é o seu interesse, e a corrupção. Estou cansado de conhecer políticos que agem de acordo com o interesse público, que fazem trade-offs entre seus interesses e o interesse público. Mas o fato é que, em alguns partidos, os políticos são rigorosamente de acordo com o governo neoliberal — não que eles sejam neoliberais, mas são corruptos mesmo.

Valor: Há políticos para todos os gostos, então.

Bresser-Pereira: Uma coisa que as pessoas têm que entender é que a ética da política é muito diferente da ética de negócios. Na ética dos negócios, é razoável que cada um defenda seus interesses; na ética da política isso não é aceitável. Felizmente, temos muitos políticos que defendem o interesse público, muitos no PMDB também. Existem bons políticos em todos partidos, embora o interesse público seja mais forte em alguns. Acho que uma análise mais interessante que foi feita da política nos últimos anos foi a do lulismo, do André Singer, pois ele separa o lulismo do PT. Entendo que o PT perdeu uma parte de seu apoio ideológico quando fez seus compromissos, mas é muito importante na política aceitar compromissos. O que existe no Brasil é a crítica aos políticos feita por jornalistas e por jornais, partilhada pela opinião pública normal, que não compreendem a lógica do “compromise”. Isto está na minha cabeça desde criança: quando eu tinha uns oito ou nove anos, perguntei para o meu pai o que era política. Ele disse: “Política é a arte do compromisso”. Entendi naquela ocasião, e isso ficou na minha cabeça. Porque a única forma de conseguir maioria e governar é fazendo compromissos, não tem jeito. O eleitor não tem compromisso nenhum: ele vota naquele que ele acha melhor e acabou-se. Agora, quando você se vê governador, presidente, tem que fazer compromisso, não tem jeito. Compromissos são concessões políticas, acordos, o que é absolutamente legítimo. É o que Max Weber chama de ética da responsabilidade. Nossos políticos não são tão ruins quanto dizem.

Valor: O senhor acha que tem uma demonização aí.

Bresser-Pereira: Ah, tem uma demonização.

Valor: A quem isso serve?

Bresser-Pereira: Isso é muito claro. Eu uso uma frase do Jacques Rancière, sociólogo político francês, de esquerda, sobre o ódio à democracia. A democracia sempre foi uma demanda dos pobres, dos trabalhadores, de classes médias republicanas, nunca foi dos ricos. Os ricos odeiam a democracia, embora digam que defendem. Eles sabem que a democracia não vai expropriá-los, que a ditadura da maioria não vai expropriá-los, mas eles continuam liberais e, se não têm ódio, pelo menos têm medo da democracia. E qual a melhor forma de neutralizar a democracia? São duas. Uma é fazer campanhas eleitorais muito caras. Então, financiamento público de campanha, jamais. Rico não aceita isso em hipótese alguma. A outra estratégia é desmoralizar os políticos.

Valor: A crítica também não é democrática?

Bresser-Pereira: Sim, é claro que pode criticar. A imprensa faz um grande serviço à nação criticando os políticos, e criticando os capitalistas, e criticando tudo em volta, essa é sua função. O ponto é até onde chega a crítica razoável e até onde vira uma crítica violenta, que é um desrespeito às pessoas e é uma forma de limitar o poder dos políticos, e, portanto, o poder do povo — isso é uma dialética também. Uma coisa clara é que a corrupção existe porque o capitalismo é essencialmente um sistema corrupto e os capitalistas estão permanentemente corrompendo o setor público. É fácil verificar quem são os servidores públicos mais corruptos. Quem corrompe professor universitário? Ninguém. E quem corrompe delegado de polícia? É claro que tem um monte de gente interessada em corromper delegado de polícia, fiscal da Receita.Os fiscais da Receita não são intrinsecamente mais desonestos que os professores. Fizeram concursos mais ou menos igualmente, são pessoas igualmente respeitáveis, só que uns são submetidos a processos de corrupção por parte das empresas; outros, não.

Valor: O capitalismo é ruim?

Bresser-Pereira: Acho o capitalismo o melhor sistema que existe, porque não tem outro. Acho que a democracia é, de longe, o melhor sistema, apesar de tudo. Outra coisa é o problema do progresso. Acredito piamente no progresso, mas porque acredito na revolução capitalista eu acabei de entender o Hegel. E o que entendi essencialmente do Hegel? Para Hegel, o Estado é a realização suprema da razão humana. É isso que ele diz, de várias maneiras. O Estado é, em primeiro lugar, a lei, depois a organização em torno dessa lei. Onde a razão humana está melhor expressa, no Haiti ou na Dinamarca? É evidente que na Dinamarca. O Estado dinamarquês é muito superior ao Estado haitiano, que nem existe, ou mesmo ao Estado boliviano ou paraguaio, ou mesmo ao Estado brasileiro, ou ao Estado francês, que é bem melhor ainda que o nosso. O americano não é grande coisa, e não é melhor que o nosso. A razão humana que os dinamarqueses colocaram na construção do seu Estado e da sua sociedade foi superior à nossa. Espero que cheguemos lá. E essa construção se faz com a política, essa é uma construção e é política. É uma construção que você está fazendo todo dia. Ernest Renan diz que a nação é uma construção de todos os dias – a sociedade civil é uma construção de todos os dias, o Estado é uma construção de todos os dias. Isso te dá uma visão do mundo que é otimista. Afinal, você acredita que vai dar certo. Essa construção é sempre feita de baixo, é resultado de uma luta social dos mais pobres, que defendem seus interesses, e de uma parte da classe média que eu chamo de republicana. E o que é uma classe republicana? Um indivíduo republicano é aquele que é capaz de agir não apenas de acordo com os seus próprios interesses, mas tem que definir o que é interesse geral. A tendência nossa, de todas as classes, é mostrar o seu interesse como interesse público e acabou-se. É muito fácil desse jeito. Mas há pessoas que são capazes – e eu estou convencido que é um número razoavelmente grande de pessoas – de fazer os trade-offs entre os interesses próprios e o interesse público.

Valor: O que o senhor acha do Bolsa Família?

Bresser-Pereira: Acho uma maravilha. Sempre acreditei piamente na competição. Quando pensava naquela emenda da Revolução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade –, eu entendia perfeitamente as ideias de liberdade e igualdade, mas a fraternidade eu achava simplesmente simpática. Nesses últimos anos, todavia, descobri que é absolutamente fundamental. E por quê? Porque na sociedade em que vivemos existe uma quantidade muito grande de pessoas cuja capacidade de competir é muito limitada. Mesmo que tenha educação, por características pessoais, geralmente de equilíbrio emocional, às vezes de inteligência, essas pessoas não são capazes de se defender da competição como devem. E aí que entra a fraternidade. O Bolsa Família é um mecanismo altamente fraterno. O Lula sabe da necessidade da fraternidade, da solidariedade, a vida dele deve ter lhe ensinado. Ele é perfeitamente capaz de competir por conta dele, isso é evidente. Mas sabe a importância da solidariedade.

Valor: O Estado social é o caminho natural para o país?

Bresser-Pereira: No Brasil, o Estado social é uma coisa séria. Uma carga tributária de 35% é muito alta, de fato, mas isso é o resultado de um acordo social e é uma compensação. Na Ásia, a carga tributária é muito menor, e lá não existe Estado social, mas as medidas de distribuição de renda são muito melhores. Os países asiáticos que não passaram pelo comunismo já tinham um esquema de solidariedade familiar e um esquema de mercado amarrado no campo de convenções, que permite uma distribuição de renda muito melhor. Então, o Estado é muito menor. No Brasil aconteceu o contrário, inclusive por causa de nossa origem escravista muito forte e relativamente recente. O Estado social veio aqui como uma solução muito forte, muito boa, e é um elemento absolutamente fundamental. Do ponto de vista ético, é um elemento de fraternidade e de solidariedade, mas do ponto de vista social e político é um fenômeno de coesão. A estabilidade desse sistema é dada pela coesão social. Isso não foi o Lula quem fez, foi a democracia, o próprio Sarney já começou, depois Itamar, Fernando Henrique e Lula continuaram. Só no governo Collor isso parou um pouquinho. É um projeto, um compromisso, mas agora no outro sentido: a palavra “compromisso” em português é uma desgraça; em inglês são duas palavras, “commitment” e “compromise”. Aqui no Brasil é uma só, tem que explicar. Naquela época, o compromisso foi o “commitment” de fazer a distribuição via gasto social. Dizem que o Bolsa Família desestimula o trabalho. Isso é bobagem, é absolutamente secundário.

domingo, 24 de julho de 2011

A Crônica de Um Dia Errado

Sabe aquele dia em que tudo começa errado? Posso dizer que hoje, 20 de julho de 2011, é “aquele” dia. Espero que durante o seu transcorrer consiga mostrar-me que  meus presságios são infundados.
Em verdade, uso este termo “errado” para expressar a matinal situação deste dia por que passei. Olha só, estou na Av. Paulo VI, Pituba, aguardando um ônibus que me conduza à Av. Paralela, mais precisamente para o ponto do supermercado Extra. Eis que surge um certo ônibus com uma placa, em seu parabrisa direito, com a inscrição: “para no ponto do Extra”. Não titubeei, ingressei no coletivo, pela porta dianteira, (afinal, idoso tem uns privilégios, até mal vistos por alguns). Cortesmente, dirigi-me ao motorista: “bom dia, amigo” e não recebi uma resposta no mesmo diapasão, mas até ai tudo bem. A viagem seguiu. Felizmente não me apareceram, até então, aqueles personagens, público e notoriamente conhecidos, que sobem e descem a cada ponto de parada. Enquanto isto, eu dou sequência à leitura do livro “Nação Crioula”, à medida que, de quando em vez, tento identificar minha posição geográfica. Após algum tempo, percebo que o veículo não se dirige à Paralela. Como as vias de trânsito mudam e estão muito mudadas, entendi que poderia haver alguma ligação desconhecida que me levaria ao destino, nada! O ônibus percorria rumo oposto ao desejado por mim. Aguardei um ponto de ônibus conveniente e saltei. Atravessei e, êpa!, lá vem um Lauro de Freitas. Ingresso sem pestanejar. Com pouco (estranho esta expressão, não? Mas vamos lá), vejo decepcionado que o veículo tomava rumo da orla, mas de uma forma regressiva, pois está retornando por uma via que me leva ao Costa Azul, quem conhece a cidade, sabe do que estou falando. Que fazer? Saltar novamente, tentar outro ônibus? Olha acomodei-me e resolvi destinar-me a São Cristóvão, via Itapuã, onde poderei finalmente tomar um ônibus para minha residência em Barra do Jacuípe. Êta, introdução longa.

O Privilégio legal (porém contestado) do Idoso
Também, não deixaram de habitar minha mente, histórias por que já passei andando de ônibus e tendo que conviver com esta minha nova condição de privilegiado com passe-livre nos coletivos da minha cidade. Em São Cristóvão, ponto de ônibus preferido por mim, há um certo empregado da empresa, cuja função é extrair passagem para quem vai ingressar no ônibus que chega e se destina à linha verde. Eu não sabia deste detalhe e ingressei no ônibus e ouço, logo depois, os gritos aflitos do referido empregado, viro-me e ele a mim se dirige: “este ônibus não recebe passe de idoso!”. De pronto, respondi-lhe que não estava pedindo concessão alguma (já havia consultado meu Advogado sobre o direito do passe em ônibus intermunicipal, e a explicação me convence que não dá para discutir ali, no próprio ônibus).
Estava num ponto ônibus, na antiga Água dos Meninos, quando percebo dois ônibus da mesma empresa e para o mesmo destino e que iriam em direção por mim desejada. O primeiro passou (estava um pouco cheio) e acenei para o seguinte. Quando estou subindo os degraus o motorista vira-se para mim e pergunta: “que ônibus é aquele?”, respondi “não sei” (eu havia percebido a sua intenção, que era a de me questionar sobre o fato de eu não ter escolhido o primeiro veículo). Como ele fez um gesto acintoso de desagrado, perguntei-lhe: “você não quer que eu pegue seu ônibus, é?”. Não me respondeu, porém ficou a praguejar em voz baixa, hora consigo próprio, hora com um outro passageiro, que parecia ser seu colega. Um pouco antes de saltar e, mesmo assim, com receio de que arrastasse o carro antes que eu descesse, disse-lhe: “olha, eu só você amanhã.” Se minha mensagem foi entendida, não sei. Mas quis lhe dizer que o futuro, com a velhice, lhe aguarda; isto, se lhe for dado o direito de atingir a condição de idoso.
      
E o que se passa num ônibus
Quem anda de buzú, (vou acentuar para dar realce e para não confundir com búzio), sabe muito bem dos personagens que habitam o ambiente. É passageiro conversador; contador de mentira, que não se acanha de mentir e ainda fazê-lo em alto e bom som; é passageiro mal humorado; passageiro dorminhoco; passageiro leitor; é discussão entre passageiro e cobrador (o popular cobreiro); algumas das vezes, discussão com o motorista (mais conhecido como motô); e esses outros passageiros, os passageiros eventuais, sem parada. Estes é que são “os caras”. Tem os que vendem pastilhas ralis para a garganta; barra de chocolate por dois raus; tem os que vendem pãozinhos delícia de coco, de queijo, de doce-de-leite, por dois raus e fazem a introdução da sua publicidade em empostada voz: Senhores passageiros, desculpe incomodar (mas incomodando) sua viagem, mas temos aqui...que vão ajudar a fazer sua viagem... e tome lero; mas tem também uns intragáveis membros de uma seita (acho que é uma seita) de nome Manassés, se não me engano; digo seita porque parecem seguir uma mesma diretriz, parece obedecer a uma doutrinação, todos têm o mesmo discurso, alteram, às vezes, o produto a vender. São, sempre, ex-drogados, paulistas, nordestinos de diversas origens, que estão ali, “sem ajuda do governo”, a buscar a recuperação de pessoas tóxicoviciadas. Ah! Esses são insuportáveis.
Mas, há, também, casos divertidos, que nos ajudam a romper as distâncias com os bólides soteropolitanos a extremas velocidades, alcançadas graças à fluidez, à mobilidade (este termo é moderno, nada de démodé. É termo futurista, com foco em 2014) que se obtêm nas nossas super, high ways, ruas e avenidas desta grande metrópole.
Um conhecido meu estava a dormitar numa dessas viagens, quando é acordado por uma grossa, potente e nervosa voz anunciando um assalto, pela porta da frente. Ao tempo em que acordava, percebeu que havia movimentação no sentido trás-frente, pois estava a recolher os pertences, um comparsa, assim como fazem os coletores de dízimos na IURD e outras mais e no mesmo instante notou que algo estaria sendo colocado entre suas nádegas e o banco. Não é que alguém, querendo proteger seu “redondo” jogou-o às costas do nosso amigo. Que situação! Se  seu” ladrão, que não gosta de ser enganado, descobrisse a insensatez do ato, que seria, logicamente, atribuída ao nosso amigo. Ah! O nosso amigo estaria "frito".       
Para me prevenir de assalto a ônibus, antes de ingressar no coletivo, retiro minha habilitação, meu cartão de crédito, algumas cédulas, tendo a preocupação de separar da carteira de cédula, que sempre tem guardado o do “seu” ladrão, para não contrariá-lo. Aprendam!
Um certo maxão (é erro assim propositadamente, hein) viajava num desses nossos bem confortáveis veículos, que numa dessas raras (êpa!) vezes está superlotado, percebe alguma coisa estranha em contato com suas partes traseiras, encara o agente do ato que provocou tal sensibilidade, encara, encara e finalmente diz-lhe: olha, dou (ele lá) trinta minutos para que se saia daí, hein!
E se quiser mais histórias de buzu, contatem o Prof. Aloísio, dedicado esposo de Da. Maria Cachoeira.
E assim seguem os ônibus Estação Mussurunga-Lapa; Pituba-R2; Cajazeiras 3,4; Boca da Mata; Itinga; Saboeiro... 

“Nação Crioula”
Enquanto viajo nos ônibus de destinos opostos ao desejado e, como se fosse uma compensação, um consolo, ocorreu-me a idéia de fazer esta crônica. Já disse acima que estava lendo um livro. É de um autor, de origem lisboeta, muito viajado e que “...conta a história de um amor secreto: a misteriosa ligação entre o aventureiro português ... e ... que, tendo nascido escrava, foi uma das pessoas mais ricas e poderosas de Angola.” E em cujo enredo “misturam-se personalidades históricas do movimento abolicionista, escravos e escravocratas, lutadores de capoeira, pistoleiro a soldo, demiurgos, (para quem não sabe: criatura entre a natureza divina e a humana) numa luta mortal por um mundo novo.O personagem principal, de nome Fradique Mendes, amigo de Eça de Queiroz, com quem troca cartas regularmente, registra, através de correspondência para uma sua madrinha, para uma sua amante e para o amigo Eça, seu dia a dia em Luanda-Angola, Paris, Lisboa, Recife, Olinda, São Francisco do Conde, aqui no Reconcavo baiano, onde comprou um engenho, com muitos escravos, que os alforriou e, por causa disso, abriu guerra com os coronéis escravistas. Sua fazendo contava com mais de uma centena de cativos. Alforriados, passaram a prestar serviços remunerados, conforme a produção; mas um deles, por nome Cornélio recusou-se a permanecer na fazenda (e já era forro), pois seu maior desejo era retornar à sua nação, Hauçá, de um povo mulçumano do norte da Nigéria, segundo “o Aurélio”, e durante toda sua vida de escravo havia trabalhado, juntando recursos para esse dia, mas suas posses eram ainda insuficientes para a viagem e o nosso Fradique completou com suas patacas, reis, contos, o que lá fosse moeda da época.  Por causa deste grave conflito criado, recebeu uma ameaça na forma que passo a relatar: estava nosso personagem em viagem marítima, quando num destes embarque e desembarque, vê próximo ao seu camarote uma mala (a sua fora furtada) parecida com a sua, aproxima-se e nela estava inscrito seu nome, em grandes letras. Assustado, resolve abri-la e o que ali encontra: a cabeça empalhada de um homem negro, que pertencia nada mais nada menos a seu ex-escravo Cornélio.  Esta guerra; seu amor por uma ex-escrava, (não explicado convenientemente se correspondido de uma maneira integral); suas viagens e seus relacionamentos com poderosos do momento formam um história eletrizante, que me fez “passar” do meu ponto final, obrigando-me a andar muito de volta na direção da minha casa.

Ojó Ibaré: Dia da Amizade”
O dia que iniciou para mim como um “dia errado” é o mesmo dia que se dedica a homenagear a Amizade. A expressão do título acima é de autoria de Maria Stella de Azevedo Santos, Ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá, a notória mãe Stella, e titula um seu artigo, publicado no jornal A TARDE de hoje, no qual tece considerações sobre este sentimento e faz-me saber que o dia foi instituído por um hermano argentino, de nome Ernesto Febraro, pelo fato de no dia 20/07/69, o homem ter conquista a Lua, fato que, para ele foi “uma prova significativa de que, quando as pessoas se unem, não existem obstáculos intransponíveis”, aspas para Da. Stella. Ainda, segundo a Ialorixá, “se não é fácil encontrar um amigo sincero, mais difícil ainda é ser um deles” e uma historinha da mitologia africana: “Orumilá viajava em comitiva e todos queriam ajudá-lo carregando sua sacola de divinação. Os “amigos” terminaram brigando entre si, fazendo com que Orumilá optasse por carregar seus apretechos...ele estava confuso de quem entre todos...era seu amigo de verdade e, por isso, resolveu fazer um teste. Mandou espalhar um boato de que ele tinha morrido. Muitos “amigos” apareceram para demonstrar o pesar à esposa de Orumilá. Cada um dizia que o referido orixá lhe devia dinheiro, o qual tinha que ser pago com o recebimento da sacola da divinação. Escondido Orumilá ouvia tudo aquilo com um profunda dor. Foi quando apareceu Exu, tão pesaroso quanto os outros. A mulher de Orumilá lhe perguntou, então, o que seu marido devia para ele. Exu respondeu que simplesmente nada...Orumilá apareceu e disse: “Quando a afinidade com um amigo é grande, ele é considerado mais que um parente.”
O próprio Hermano argentino disse: “Meu amigo é meu mestre, meu discípulo e meu companheiro”.
Um razoável número de pessoas são meus mestres, meus discípulos, meus companheiros, mas é melhor ficar no “razoável número...” para eu não cometer o penoso erro da omissão. Viva o Amigo!

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A MPB NOS TEMPOS DA DITADURA

A MPB NOS TEMPOS DA DITADURA

Os duros tempos da ditadura, sob os quais vivemos desde o início dos anos 60 até os oitentas, são sempre tema, para mim, interessante. Quando leio alguma coisa sobre aquela época, é como se estivesse assistindo a um filme e do qual fosse protagonista (sem querer, de forma alguma, dizer que fui militante político, “terrorista”, etc, etc.). A análise feita por Luis Nassif, sobre aqueles tempos, especialmente sobre o desempenho da música popular e seus autores, em relação ao regime da exceção vivido é realmente uma dádiva, mesmo porque foi provocada pela entrevista dada por Gustavo Alonso à revista Forum, ele que é autor do livro O Silêncio dos Inocentes, em que “questiona mitos da MPB à época da ditadura militar e defende que o arbítrio existiu não devido à passividade e da sociedade brasileira, mas porque a maioria dessa sociedade o apoiou, legitimou e aplaudiu.”.
O livro é desdobramento da dissertação de mestrado que Gustavo apresentou em 2007.
Como constata Alonso, a maioria da população apoiava a ditadura. E amava Chico.”.
Utilizo esta última sentença (de Nassif) para emitir minha opinião sobre o que se quer discutir nesta postagem. Acho muito simplista afirmar-se que a população apoiava a ditadura. A população, como uma manada segue a diretriz do vaqueiro e este vaqueiro era a grande imprensa, que só noticiava (voluntaria ou involuntariamente), o que interessava aos mandantes de aluguel, como até hoje a grande imprensa somente noticia o que interessa ao sistema (esteja ele ou não representado fisicamente no comando do poder executivo); havia eleições (não tão livres. Para ser bonzinho), votava-se, portanto. Não importando que somente havia dois partidos, com absoluta predominância do partido do governo; o Congresso Nacional “funcionava”; havia a impressão (passado pela grande imprensa) de que se estava a exterminar a corrupção e que o desenvolvimento estava sendo construído (mas, primeiro, dever-se-ia inchar o bolo, para então distribuir), etc.; que manifestações de apoio ao golpe, tal qual “marcha da família com Deus pela democracia”, comandada pela TFP (Tradição, Família, Pátria), TFM (Tradicional Família Mineira), “Opus Dei”, “Dê ouro pelo bem do Brasil”  etc., etc., tiveram amplificadas suas imagens e seus sons, pela mídia dominante, dando aquela impressão de adesão massiva. Tudo entrava nas nossas mentes,-  nós outros, não militantes políticos, não contestadores de primeira hora -, como se estivéssemos vivendo um sonho -, “o sonho do milagre brasileiro”. (o que o historiador fala sobre o que seu pai achava daquela situação é bem emblemático.) A população, a sua grande maioria, era atropelada, pisoteada pelo trator da mídia. Simples objeto, sem poder agir ou reagir, pois, era-lhe indiferente. Para isto se encarregavam os veículos oficiais, órgãos de imprensa em geral (um ou outro conseguia, a todo custo contrariar a lógica vigente). Somente se ouviam vozes simpáticas e aparições de políticos que eram do esquema. Vozes contestadoras? Possíveis lideranças contestadores?  eram ouvidas, sim. Mas no DOI-CODI.
Como afirmar que a população apoiava a ditadura?
Ah, sim! Sobre a MPB. Sem entrar no mérito da questão (como diria o Dr. Advogado), somente tenho a dizer que aquele período de “mordaça”, ironicamente, fez um bem danado para a nossa música. A fertilidade musical correu solta. Ajudou-nos a “agüentar o tranco” e, ainda, talvez por vias indiretas teve uma importância muito grande na conscientização política de uma grande parte da população, na qual me incluo. E relativizar a importância da MPB naquele contexto, por que?
Segue o texto de Nassif e a entrevista já referida.
Acompanhei de perto esse período mencionado pelo historiador Gustavo Alonso – que na entrevista a Pedro Alexandre Sanches, na revista Fórum (abaixo) analisa a politização da música brasileira no período da ditadura. Aliás, desisti de ser crítico de música da Veja, aos 24 anos, devido ao terrível patrulhamento que permeava o setor – como uma compensação pelo fato de pouco se poder falar contra a ditadura na política e na economia.
Criou-se um clima terrível, no qual as maiores vítimas eram os músicos, tanto os amaldiçoados, como Simonal, como os medalhões, como Chico e Caetano.
Jamais Chico ou Caetano se arvoraram em líderes contra a ditadura. Sempre foram suficientemente inteligentes para perceber seus limites políticos. Preocupavam-se em exercitar sua arte e a reagir aos esbirros da censura. E jamais Chico Buarque se outorgou o papel de símbolo. Sua estatura moral decorreu da sua música, do seu caráter, de nunca ter se metido em quizílias, em jogadas oportunistas. Geraldo Vandré foi o único compositor de peso no período a pretender um ativismo um pouco além da música - mas sempre usando a música como arma.
O grande problema é que a MPB, apesar de um público universitário amplo, era muito pequena para exercer qualquer papel político significativo. Vinha de uma certa tradição latino-americana erigir músicos em líderes populares – Violeta Parra, por exemplo. Como era um dos poucos setores com espaço na mídia, foi o próprio jornalismo cultural – e o Pasquim – que tentou transformar músicos em heróis ou vilões. E, obviamente, a enorme burrice dos censores, procurando pelo em ovo – eu, insignificante compositor mal saído da adolescência, tive uma música censurada em um Festival Universitário porque a letra (de meu parceiro João Cleber Jurity) falava em "bengala gala", e o censor descobriu que no nordeste "gala" significava esperma de galo.
O tom do patrulhamento foi dado pelo Pasquim, com seu estilo complicado – havia o Cemitério dos Zumbis, de Henfil, que chegou a "enterrar" Elis Regina e Clarice Lispector por serem "alienadas"
Tanto Chico quanto Caetano se tornaram malditos do regime por suas incursões estéticas, por suas músicas e peças, Chico pela intragável "Roda Viva", Caetano e Gil pelo Tropicalismo.
(Em São João da Boa Vista alugamos um ônibus para assistir o Roda Viva. Voltamos absolutamente decepcionados com a agressividade gratuita da peça, com os atores procurando "interação" forçada com o público.)
Na época, qualquer evento era motivo para manifestações barulhentas dos estudantes, muitas vezes sem nenhum filtro ideológico.
Não se deve esquecer que os três foram tremendamente vaiados pelos universitários "politizados" – Chico no episódio do "Sabiá", Caetano e Gil no Festival Internacional, com "É proibido proibir". A música, aliás, era um desabafo contra a censura dos militares mas também contra o patrulhamento dos militantes. Mais do que contra o regime militar, era contra o terrível clima de disputas políticas (no âmbito do público universitário) que sufocava qualquer manifestação artística. O CCC espancou os atores do Roda Viva; os politizados espancaram "Sabiá". Os mpbzistas fizeram passeatas (!) contra a guitarra e contra a Jovem Guarda.
Havia uma ebulição permanente no ambiente universitário qie seria para tudo e para nada, muitas vezes sem nenhum filtro ideológico mais apurado.
Lembro-me de outro festival universitário da Tupi, no qual Fernando Faro tentou inovar montando uma proposta estética diferenciada. Minhas músicas "certinhas" foram desclassificadas. Entrou uma música experimental (bem ruinzinha). Com receio da indiferença, resolvemos ao menos provocar vaias. E entramos no palco vestidos de mendigos. Foi uma vaia só. Aí o apresentador pegou o microfone, espinafrou o público, disse que era contra o que fazíamos mas defenderia até a morte nosso direito de fazer. E o público se calou, para nossa decepção.
Nome do apresentador: Flávio Cavalcanti, símbolo máximo do regime militar na televisão. Voltamos para São João e Poços decepcionados: nossos ídolos, os agitadores universitários de São Paulo, calavam-se como crianças mal comportadas levando bronca do bedel.
Chico se consagrou com o grito de desabafo "Apesar de Você", refletindo o maravilhoso estado de espírito nacional, quando a democracia começa a voltar; assim como "Coração de Estudante", de Milton Nascimento.
Mas, mal começou a abertura, com a antiga oposição tomando o poder e se esfarelando em disputas por cargos, deu uma entrevista tirando o time de campo. Não se leu mais entrevista política de Chico, apenas manifestações de apoio a Lula em períodos eleitorais. É injusto com ele falar em oportunismo político com "Apesar de Você". Ora, se o compositor popular não capta o clima da opinião pública, que raio de popular é ele?
O grande problema da análise da MPB no período – que acomete a Internet, nas disputas ideológicas – é se tomar a parte pelo todo. A parte era um mundo pequeno, composto de críticos, músicos e um público restrito.
Como constata Alonso, a maioria da população apoiava a ditadura. E amava Chico.
O silêncio dos inocentes 
Livro do historiador Gustavo Alonso questiona mitos da MPB à época da ditadura militar e defende que o arbítrio existiu não devido à passividade e da sociedade brasileira, mas porque a maioria dessa sociedade o apoiou, legitimou e aplaudiu.
Por Pedro Alexandre Sanches
Chico Buarque é o anti-Wilson Simonal. Essa tese não é o fio condutor do livro ensaístico Simonal – Quem não tem swing morre com a boca cheia de formiga, do historiador Gustavo Alonso. Mas é a conclusão mais polêmica e perturbadora a que chega o trabalho de um pesquisador que se afirma de esquerda, mas está disposto a contestar mitos e dogmas acalentados desde a ditadura cívico-militar brasileira, seja à direita ou à esquerda.
O livro é desdobramento da dissertação de mestrado que Gustavo apresentou em 2007 à Universidade Federal Fluminense (UFF). A demora de três anos da Record em editá-lo faz com que chegue simultaneamente à conclusão de sua tese de doutorado, sob o título Cowboys do asfalto: música sertaneja e modernização brasileira. A linha seguida em ambos é análoga à do também historiador Paulo Cesar de Araújo, autor do livro Eu não sou cachorro, não (Record, 2002), que explicitava preconceitos classe escondidos atrás da habitual trincheira de guerra aberta entre a sigla MPB e grupos artísticos rejeitados por ela.
O recorte de Gustavo se estende à própria ditadura de 1964. Despreocupado em culpabilizar ou inocentar Simonal das acusações de deduragem que a partir de 1971 dizimaram uma carreira até então gloriosa, o historiador quer mostrar que Simonal era um apoiador da ditadura, sim, mas estava longe de ser o único. Invertendo o ponto de vista habitual, encaixa seu personagem à evidência de que o arbítrio existiu não devido à passividade e apatia da sociedade brasileira, mas porque a maioria dessa sociedade o apoiou, legitimou e aplaudiu.
Memórias como a de um Chico Buarque heroico, defensor de todos contra os militares, seriam uma construção (ou distorção) posterior, assim como a de um Wilson Simonal maquiavélico e solitário na defesa de um regime, contra todo um país de vítimas 100% inocentes. É onde Chico seria o anti-Simonal, embora isso nunca seja proferido.
Gustavo, niteroiense nascido por acidente na cidade paulista de Aparecida, durante uma viagem do pai engenheiro e da mãe nutricionista, desenvolve na entrevista abaixo a provocação, questionando o papel de resistência atribuído à peça teatral Roda Viva (1968), de Chico, ou traçando semelhanças entre a hoje hegemônica Tropicália e o movimento da pilantragem, proposto por Simonal e interrompido com sua derrocada.
Fórum – De que lugar ideológico você defende as hipóteses de seu livro?
Gustavo Alonso – Eu me defino como de esquerda. Ainda acho essas categorias válidas, mas não estou muito disposto a adubar, proferir ou louvar certas histórias que foram contadas e viraram mitologia, mesmo na esquerda. Acredito que esquerda e direita existem, sim, mas gosto de desestabilizá-las e distorcê-las um pouco. Se é que se pode meter outra questão nessa polêmica, prefiro o tropicalismo, à medida que ele é e não é a esquerda, e é e não é a direita. Talvez seja a esquerda da esquerda, não sei. É melhor que a crítica da esquerda venha da esquerda. A crítica de direita volta e meia cai num moralismo muito grande. Sou de 1980, da geração que não viveu o auge da MPB, os festivais, os anos 1960 e 1970. Não gosto da palavra declínio, mas a MPB já não era o que era antes, e minha geração teve que lidar com esse legado. Algumas pessoas dizem: “Ah, você não viveu”. Como se fosse necessário viver a escravidão pra saber o que ela foi.
Fórum – Você não viveu também o auge da ditadura. O que isso significa para seu trabalho?
Gustavo – (Silêncio.) Boa pergunta. (Silêncio.) A questão da ditadura é um pouco a mesma questão da MPB. Talvez ter vivido naquele período intenso impossibilite perceber certas coisas através da memória, até porque a memória pode construir noções que não correspondam tanto à realidade. Talvez o olhar desta geração possa abrir novas possibilidades de análise e entendimento. Acho que o fato de eu não ter vivido a ditadura não chega a ser uma desvantagem. Também não diria que é uma vantagem, não. É um outro olhar. Falando disso mais pessoalmente, minha família, principalmente minha mãe, tem a referência da resistência à ditadura muito forte dentro dela. No entanto, as questões da esquerda da época não fazem sentido nenhum para ela. Questão da terra? É a favor do grande produtor rural. Igualdade social? Não, não tem que ter igualdade pra todo mundo. Encontrei o diploma de engenheiro do meu pai e vi que ele se formou em 17 de dezembro de 1968, quatro dias depois do AI-5. Meu pai não tem lembranças positivas da ditadura, mas nem negativas. Perguntei: “Pai, você se lembra da promulgação do AI-5?” “Não.” “Mas, pô, foi quatro dias depois, você não se recorda se teve confusão?” “Não, não teve.”
Fórum – Seu pai é o brasileiro médio de que você fala no livro, como Simonal?
Gustavo – É, um pouco indiferente, mas que ao mesmo tempo teve sua vida construída durante o período, como grande parte da sociedade brasileira. Eu queria menos tentar repudiar isso, afinal, bem ou mal, sou fruto disso, e mais tentar entender. Como assim? Como se viveu a ditadura de forma normal? Como apenas 4 mil pessoas estiveram direta ou indiretamente envolvidas com a resistência? Que legitimidade tinha essa ditadura na sociedade? A que anseios autoritários ela respondeu? Isso me possibilitou uma percepção para além da memória, porque essa memória eu não tenho. Não lembro o que é Medici discursando, ou Simonal cantando, ou Caetano no festival. Tenho a lembrança de vídeos. O livro teve inspiração nos questionamentos que a gente anda tendo no Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC) da UFF, com Daniel Aarão Reis, Denise Rollemberg, uma série de professores que vêm tentando repensar a ditadura, o apoio, a legitimidade, o consenso. Não para dizer que era válida, que é a leitura que a direita faz e muitas vezes a própria esquerda também faz dessa interpretação – ou seja, de que estamos relativizando a ditadura e por isso compactuamos com ela. Não é disso que se trata. Daniel Aarão, que é meu orientador, foi um dos caras que sequestraram o embaixador norte-americano. E é acusado por uma parte da própria academia de ser de direita.
Fórum – A mídia nos últimos anos tem a obsessão de querer determinar se Simonal era culpado ou inocente. Vou martelar nessa tecla, até porque sua posição parece diferente de todas as outras. Simonal era inocente ou culpado?
Gustavo – (Respira fundo. Silêncio.) Também não tenho provas cabais de nada, não consegui achar. Eu diria: ele seria um cara que poderia dedurar. Mas quem ele iria dedurar especificamente, Chico, Caetano? Não precisaria da pessoa dele para fazer isso. Mas era um cara que, como a maior parte da sociedade brasileira, estava vivendo a ditadura como uma solução, e não como uma coisa a ser combatida. Vivia como expressão dos seus próprios desejos, autoritários, sim, antidemocráticos, sim, desenvolvimentistas e economicistas, sim. Tentar trabalhar com um Simonal ingênuo? Ele não era ingênuo em nenhum momento. Além de transformá-lo em vítima, o transforma em vítima como se fosse apolítico, como se não se envolvesse nas discussões. Pelo contrário, estava sempre afirmando coisas, dizendo. Uma parte da academia tem essa ideia de que as pessoas eram caladas, reprimidas, que se tivessem o direito de falar falariam contra a ditadura. Mas o que a gente vê na música mais popular é que eles estão performando o regime, mais do que estão compactuando. É o regime que compactua com eles, é legal inverter.
Fórum – Sem entrar em questões maniqueístas de “inocente” e “culpado”, você defende que Simonal não era um cara inocente.
Gustavo – Sim, não foi escolhido para bode expiatório à toa. Bode expiatório é bode. Que ele era favorável ao regime, é inegável – como a maior parte da sociedade brasileira. Foi pro México, serviu de embaixador da música brasileira, do futebol, da sociedade. É a mesma situação do Pelé, mas o Pelé é mais gelatina. Roberto Carlos sempre foi gelatina, sempre fugiu dessas discussões. Simonal é o contrário do Roberto nesse sentido. Ele metia o dedo, era chato, provocante, irônico, debochado. Tanto é que o tom do escárnio que se tinha com Simonal depois da queda é muito parecido com o tom que Simonal tinha antes com as esquerdas louvadoras do samba. O maior problema é que inocentar o Simonal é continuar vendo o problema pela metade. É mais que isso, é tentar reintegrá-lo ao padrão da MPB sem problematizar a ditadura na MPB.
Fórum – Qual é sua leitura do papel de Chico Buarque, tido como um herói que nos defendeu da ditadura?
Gustavo – Não estou aqui pra dizer que essa imagem não tem validade. Ao contrário, está provado que é uma boa imagem. Mas ele não nasceu resistente, não é resistente desde o bercinho. Isso fica muito nublado na historiografia e na academia. Porque é o público dele, o público universitário. Mas a imagem do Chico “Apesar de Você” (1970) é jogada pra trás. É colocada lá desde 1966, tem livros que insistem em falar que em 1964 Chico juntou molotov em casa. Estou pouco interessado nessa grande questão, quero entender que imagem a sociedade tinha dele, assim como de Simonal. Ele podia resistir, mas inicialmente a sociedade não comprava essa imagem. Poderia juntar coquetel molotov, mas daí à sociedade percebê-lo como resistente depende de uma mediação. E tinha os tropicalistas falando que ele era avô musical. Roda Viva é constantemente supervalorizada na obra do Chico. A gente compactua com uma imagem que o próprio Chico quer construir dele, do literato, que daqui a pouco vai entrar na Academia Brasileira de Letras. Não se trata de afirmar o bom ou ruim romancista, como foi o debate com a Companhia das Letras, a Record, a Veja. O texto de Roda Viva é uma crítica à jovem guarda. A questão é que foi montada pelo Zé Celso Martinez Corrêa. Aliás, é engraçado que não existe o livro Roda Viva. Foi lançado lá em 1968 e depois nunca foi reeditado, e o próprio Chico considera uma peça menor, já falou em várias entrevistas que não gosta muito.
Fórum – Outra lebre que você levanta é da tradução do livro Yellow Submarine, dos Beatles, pelo Nelson Motta, que também nunca foi reeditada.
Gustavo – É aquela confusão entre pilantragem e Tropicália. Pepperland virou Pilantrália e o chefão lá da terra virou Superbacana (título de uma canção tropicalista de Caetano). Nelson Motta misturou os dois, nesse espírito do colorido, da ironia, da brincadeira. Toda vez que levantei essa questão da semelhança, na própria academia, tomei pau. Com exceção do Caetano, todas as pessoas que entrevistei, inclusive os pilantras, reagiram contra essa semelhança.
Fórum – É dessas convenções que todos repetem igual sem muito saber por quê.
Gustavo – A memória que se constrói hoje sobre Simonal quer recolocá-lo na MPB, e pra recolocá-lo não pode problematizar a MPB, o tropicalismo, a bossa nova. Tem que colocar ele de volta lá, então tem que falar ele era um bom bossanovista, um showman maior que Roberto. Nesse ponto, Caetano acaba ficando muito parecido com a memória daqueles que ele combateu na esquerda mais tradicional. Ele, e os tropicalistas em geral, se coloca como um vanguardista, um visionário – e é de fato. Mas isso explica também, em parte, o esquecimento do Simonal. Até recentemente, era a memória fundada no dedo-duro, ou então não se falava do Simonal. E o tropicalismo ajudou, não a dizer que era dedo-duro, mas a silenciar, porque afirmar Simonal seria colocar ele como concorrente. Ele era Roberto Carlos com Jorge Ben e com Chacrinha, os três juntos, os três mitos dos anos 1960 para o tropicalismo, reunidos na mesma pessoa. Por que o tropicalismo não incorporou? É a mesma questão que levanto pro Chico. Até a volta do exílio a memória que se tinha dele era do cara muito bom por fazer músicas tradicionais, “o novo Noel Rosa”. Esteticamente ele sempre foi visto como um grande cara, desde o começo, eu não negaria isso, mas politicamente ele não era visto como combativo. Chico era feito não só pelas esquerdas no início dos anos 1970. Volta e meia era incorporado pela direita, Jarbas Passarinho gostava dele. Chico agradava uma determinada direita folclorista.
Fórum – E o texto de Roda Viva, na sua opinião, não era de resistência?
Gustavo – O texto, tenho certeza absoluta que não é, não era contra a ditadura. Não há nada ali, só há uma denúncia da indústria cultural, do rock, da música importada. A gente acaba compactuando com a imagem que o Comando de Caça aos Comunistas deu pra Roda Viva. O que o CCC via? Via como uma peça subversiva. Aí dizemos: Roda Viva era uma peça subversiva, por isso foi reprimida, acuada, invadida pelo CCC. Essa imagem não se sustenta no texto. Tanto é que a montagem gerou problemas com o Chico Buarque. Zé Celso queria problematizar a chicolatria, chegou a propor um cartaz com os olhos de Chico boiando no cartaz como se fosse num açougue, ironizando a chicolatria. Quem tinha esse perfil debochado, irônico, era o Zé Celso, mas isso é creditado ao Chico, pra provar que ele estava resistindo lá em meia oito.
Fórum – O livro fala do exílio na Itália como divisor de água entre os dois Chicos.
Gustavo – Esse período na Itália é interessante pra repensar essa metamorfose do Chico, mas não chega aqui no Brasil. Eu só soube pelo Luca Bacchini, um italiano que fez essa tese lá. Chico Buarque foi vendido na Itália como um cantor de protesto. Era isso que os italianos queriam, ou a gravadora RCA achava que queriam – ele não fez nenhum sucesso lá. Achavam que assim iam fazer dos discos dele um sucesso, mas logo perceberam que só “A Banda” tocava lá.
Fórum – A RCA se baseou no que estava acontecendo no Brasil, que existia uma ditadura e uma resistência contra ela?
Gustavo – É, uma sala secreta de uma gravadora percebeu isso. Nesse caso a indústria cultural ajudou a forjar a imagem do Chico Buarque, o que é paradoxalíssimo. Ele acatou essa forma de ser vendido, mas parece que foi percebendo que era um desejo de um determinado grupo social no qual estava inserido. Depois dessa experiência italiana, ele meio toma a tocha do Geraldo Vandré. Não só ele, vários artistas perceberam que convinha cantar um som mais identificado às universidades, que sempre foi o público da MPB. É uma percepção que não veio desde o berço, se deu no cotidiano, nas disputas. Elis Regina fez isso. Chico percebeu logo, e depois disso virou esse mito. A imagem que ele quer pra si e a que a sociedade tem dele são muito coladas, muito simbióticas. Ficou tão forte que algumas problematizações que eram jogadas pra outros artistas não eram jogadas pro Chico. Ele nunca foi questionado, por exemplo, por gravar por uma grande multinacional. Era um compositor inicialmente de sambas, modernos, mas sambas. Como assim, se você está defendendo um ideário nacional, popular? Deveria ser um problema para pessoas que têm um ideal nacional-popular com cores revolucionárias.
Fórum – Não é curioso que Chico passou a se negar a politizar sua obra e hoje se recusa a dar entrevistas? Talvez já tenha se tocado disso tudo?
Gustavo – Tendo a achar que sim. Ele é atento a essas questões. Ao mesmo tempo, é refém dessa imagem de medalhão, que ele mesmo e os outros criaram pra ele. Como Simonal também era refém da imagem que se criou dele. Por isso acho interessante pensar os dois juntos.
Fórum – Chico é o anti-Simonal? Isso não é verbalizado, porque se não existia o Simonal não existia também o anti-Simonal. Mas existia.
Gustavo – Na memória coletiva ficou entronizado assim, o que foi extremamente lucrativo pra ele, e ainda é. Sou um cara que passou a ouvir Chico com 21 anos. Não gostava, sinceramente, achava música de velho. Minha geração tem a possibilidade de fugir do mito de Chico Buarque, o que não é de nenhuma forma desmerecê-lo, mas tentar compreender de que forma esse mito foi gestado. Isto me espanta: as pessoas, na universidade, têm mil teorias pra explicar a complexidade do mundo, mas citou Chico Buarque, acabou a complexidade, chapou tudo, Chico resistiu e acabou, ponto. Comecei a pensar essas coisas naquela onda insuportável de Los Hermanos, em 2003. Adoro Los Hermanos, mas os losermaníacos são muito chatos, não consigo conversar com eles. São chicólatras nesse sentido, nada é comparável, nada chega a esse degrau. Outra coisa que me levou a pensar essas questões foi aquele plebiscito das armas, em 2005. Fiquei muito impressionado com o tom agressivo da sociedade. Eu era contra as armas, fui acusado de ser pró-Globo, de querer que a população fosse passiva. O tom era agressivo, ostensivo, meio Veja, principalmente da galera a favor da continuação das armas.
Fórum – É mesma sociedade que quis uma ditadura algumas décadas antes? É o que você diz no livro: a sociedade quis, permitiu, apoiou, e hoje tem vergonha, e Simonal é um bom bode expiatório pra deixar tudo embaixo do tapete.
Gustavo – Sim, mas o mais interessante sobre o Simonal é a reabilitação, a inocentação. Daqui a pouco todo mundo vai estar inocente, ninguém apoiou. Já é meio assim.
Fórum – A ditadura existiu porque a maioria da sociedade queria?
Gustavo – Infelizmente. A própria noção de ditadura militar corrobora isso, como se a ditadura tivesse sido militar. Os presidentes foram militares, mas todo o staff deles era civil. O Congresso fechou algumas vezes, mas havia Congresso. Mais que isso, havia eleições. Com meus familiares esse é um ponto que sempre incomoda muito, quando pergunto: “Vem cá, você votava em quem?”. “Não, não votava.” “Como não votava? Você era servidor público, como não votava?” “Não, não tinha eleição, não.” “Não, calma aí, tinha.” Não conseguem responder. Simplesmente esqueceram que iam votar.
Eu estava pesquisando os festejos de 1972 sobre os 150 anos da Independência do Brasil. Foram muitas festas, o corpo de Dom Pedro I veio de Portugal transladado pra ficar no Museu do Ipiranga, visitou todas as capitais, e em todas as capitais teve uma multidão recebendo o corpo. Teve as Olimpíadas do Exército, um mundialito de futebol, os filmes, Independência ou Morte. Era o auge do Milagre Econômico, antes da crise de 1973. Pergunto pras pessoas que viveram: “Não, quem estava lá na rua era obrigado, era estudante que a escola tinha que ir”. Pelos jornais da época, não era bem assim. É triste reconhecer isso, mas me parece melhor do que ficar simplesmente com a noção de que a sociedade foi vítima, não tinha nada a ver. Quem não sabia que as pessoas eram torturadas? Isso não dá. Esse é o problema da imagem inflada do Pasquim e do Chico, parece que estavam falando aquilo que a sociedade falaria se não estivesse calada. Não, quando se incita a sociedade a falar, ela performa aquilo que o regime vai ser no futuro.
Fórum – Ou seja, a sociedade faz a ditadura, e não o inverso.
Gustavo – É, e é uma ditadura civil-militar. E essa imagem dos militares como salvadores da pátria não foi forjada ali, vem desde a Guerra do Paraguai, nos vários golpes preventivos que os militares deram no século XX, todos dentro desse imaginário do exército como representação da sociedade. Não tenho nenhum apego ao exército, mas a sociedade se vê representada nele. É o Bope. Então havia os resistentes, que eram pouquíssimos, e do outro lado as velhas senhoras que apoiavam o regime, o CCC, a Tradição, Família e Propriedade? Não é bem assim. O apoio ao regime era muito maior que esses espectros tradicionalmente conservadores.
Outra coisa que ajudou muito a pensar a ditadura, me entenda corretamente, foi o governo do Lula. Não o governo em si, que é totalmente diferente, mas me chamaram atenção os 80% de aprovação do Lula. É igual ao que o Medici tinha. A sociedade não era passiva, nem o Simonal era passivo ou ingênuo.